“Certa vez ele
dissera algo que ela não podia conceber: os amputados sentem dores, cãibras,
cócegas, na perna que não têm mais. Assim se sentia ela sem ele, sentindo que
ele estava onde não mais se encontrava”
(G.G.M – “ O amor
nos tempos no cólera”)
Essa
madrugada assustei-me pensando em partidas, essa mania da vida de criar vazios
onde mais nos acostumara a presenças. Era de se esperar que, de tanto acenar no
porto para navios que ganhavam mar, eu já me tivesse acostumado ao inevitável
encontro de ausências imprevistas. Mas não, quase que ao contrário, pois que, de
tanto ouvir emudecimentos, fui mais é treinando ouvidos para escutar sons já
ditos, de modo que desinventasse partidas esbarrando sempre nos mesmos que ali
já estiveram. A repetição constante desacostumou-me dos portos, por fim, visto
que comecei a confundir o atracar e o içar das velas, e supus os portos como
grandes salões de festa, nos quais jamais sei quem chega ou parte, mas todos
estão.
Trecho de "Ninguém Escreve ao Coronel" |
Tudo
isso digo e floreio para tentar entender como eu, justamente, sofro do pousar
da pena de um compositor de mundos que, com toda certeza, somente partiu deste
nosso menos encantado para sua Macondo mais mágica. No entanto, desperta a
despeito da hora e do raro silêncio na rua, encaro a gasta coleção na estante.
Nem mesmo é sua obra completa, mas, para mim, é como um retrato de família,
doloridamente desfalcado. Seu patriarca enfim encontrou o inverno. Confronto-me
com pensamentos aparentemente mais racionais: já tinha a doença lhe furtado de
nós, já vivia ele em um plano outro, inventado e particular, inacessível. Mais
além, como posso sofrer assim de distância se continuo tendo-o próximo como
sempre tive, ao alcance da mão que busca o livro na madrugada insone, ao
alcance da memória que se diverte infiltrando-se imaginariamente nas cenas?
Seguem aqui, comigo em meu quarto, Cândica Erêndira,enfim liberta de sua avó
desalmada, além de Santiago Nasar, já de pé antes das 5h30 do dia em que o
matariam; e também, claro, o Coronel Aureliano Buendía, que discute animado
brigas de galo com um outro Coronel, esse meio cabisbaixo, pois que espera uma
tal carta. Em minha cama está Isabel, olhando pela janela como se visse ainda
chover em Macondo, e sozinho, no canto, arrastando os pés imemoriais, o
patriarca da nação sem saber ao certo se todo o resto lhe obedece ou ele que
lhes teme. Florentino e Firmina não vieram, seguem navegando sob a bandeira
protetora do cólera.
Adivinho
então minha angústia. Estão todos, não está Gabo. Se todos os meus mortos
deixam-me suas vozes e colos de conforto, este não se deixa a si pois que deixa
tantos outros pedaços dele. Se quase posso sentir o gosto da sopa feita pela
mulher do coronel (com o milho que era pro galo!), se não posso pensar em
pasquins sem me recordar do Veneno da Madrugada, é que o mundo inventado
chega-me de forma mais real que aquele em que vivo, aquele que Garcia Marquez
deixou em uma tarde quente de abril de 2014. Dele posso sentir essa
dilacerante saudade, entendo por fim nessa madrugada, pois que tanta vida deu a
seus personagens que o fato de que estes consigam seguir falando por si -e
preenchendo tantas das minhas solitárias noites de desencontro do sono- tudo
isso só amplia o silêncio de seu criador. Sabê-lo findo frente a sua obra
infinda é uma espécie imprevista de dor, com pitadas de contentamento. Pois que
a ausência dele só me pesa – a mim, anônima leitora que nunca lhe viu nem de
perto – porque seu mundo me é por demais presente. Bendita saudade, então!
Bendito silêncio pleno de outras vozes!
(Gabriel
García Maquez mudou-se para Macondo dia 17 de abril de 2014)