22 de dezembro de 2014

A partida de Gabo ou a descoberta de ausências

Certa vez ele dissera algo que ela não podia conceber: os amputados sentem dores, cãibras, cócegas, na perna que não têm mais. Assim se sentia ela sem ele, sentindo que ele estava onde não mais se encontrava”
(G.G.M – “ O amor nos tempos no cólera”)

Essa madrugada assustei-me pensando em partidas, essa mania da vida de criar vazios onde mais nos acostumara a presenças. Era de se esperar que, de tanto acenar no porto para navios que ganhavam mar, eu já me tivesse acostumado ao inevitável encontro de ausências imprevistas. Mas não, quase que ao contrário, pois que, de tanto ouvir emudecimentos, fui mais é treinando ouvidos para escutar sons já ditos, de modo que desinventasse partidas esbarrando sempre nos mesmos que ali já estiveram. A repetição constante desacostumou-me dos portos, por fim, visto que comecei a confundir o atracar e o içar das velas, e supus os portos como grandes salões de festa, nos quais jamais sei quem chega ou parte, mas todos estão.
Trecho de "Ninguém Escreve ao Coronel"
Tudo isso digo e floreio para tentar entender como eu, justamente, sofro do pousar da pena de um compositor de mundos que, com toda certeza, somente partiu deste nosso menos encantado para sua Macondo mais mágica. No entanto, desperta a despeito da hora e do raro silêncio na rua, encaro a gasta coleção na estante. Nem mesmo é sua obra completa, mas, para mim, é como um retrato de família, doloridamente desfalcado. Seu patriarca enfim encontrou o inverno. Confronto-me com pensamentos aparentemente mais racionais: já tinha a doença lhe furtado de nós, já vivia ele em um plano outro, inventado e particular, inacessível. Mais além, como posso sofrer assim de distância se continuo tendo-o próximo como sempre tive, ao alcance da mão que busca o livro na madrugada insone, ao alcance da memória que se diverte infiltrando-se imaginariamente nas cenas? Seguem aqui, comigo em meu quarto, Cândica Erêndira,enfim liberta de sua avó desalmada, além de Santiago Nasar, já de pé antes das 5h30 do dia em que o matariam; e também, claro, o Coronel Aureliano Buendía, que discute animado brigas de galo com um outro Coronel, esse meio cabisbaixo, pois que espera uma tal carta. Em minha cama está Isabel, olhando pela janela como se visse ainda chover em Macondo, e sozinho, no canto, arrastando os pés imemoriais, o patriarca da nação sem saber ao certo se todo o resto lhe obedece ou ele que lhes teme. Florentino e Firmina não vieram, seguem navegando sob a bandeira protetora do cólera.
Adivinho então minha angústia. Estão todos, não está Gabo. Se todos os meus mortos deixam-me suas vozes e colos de conforto, este não se deixa a si pois que deixa tantos outros pedaços dele. Se quase posso sentir o gosto da sopa feita pela mulher do coronel (com o milho que era pro galo!), se não posso pensar em pasquins sem me recordar do Veneno da Madrugada, é que o mundo inventado chega-me de forma mais real que aquele em que vivo, aquele que Garcia Marquez deixou em uma tarde quente de abril de 2014­­­­. Dele posso se­­­ntir essa dilacerante saudade, entendo por fim nessa madrugada, pois que tanta vida deu a seus personagens que o fato de que estes consigam seguir falando por si -e preenchendo tantas das minhas solitárias noites de desencontro do sono- tudo isso só amplia o silêncio de seu criador. Sabê-lo findo frente a sua obra infinda é uma espécie imprevista de dor, com pitadas de contentamento. Pois que a ausência dele só me pesa – a mim, anônima leitora que nunca lhe viu nem de perto – porque seu mundo me é por demais presente. Bendita saudade, então! Bendito silêncio pleno de outras vozes!

  (Gabriel García Maquez mudou-se para Macondo dia 17 de abril de 2014)